O transporte coletivo no Brasil já vinha de uma década marcada pela diminuição no número de passageiros quando a pandemia de Covid-19 chegou ao país. Diante da abrupta queda na circulação de pessoas, muitas cidades passaram a arcar com parte dos custos de operação dos ônibus para evitar que os seus sistemas falissem. Os subsídios que antes eram uma exceção em poucas grandes cidades se tornaram uma realidade que ainda perdura.

A consolidação dos subsídios escancarou a necessidade de repactuação dos contratos de concessão vigentes entre cidades e empresas operadoras e abriu uma janela de oportunidade para outras mudanças que visem a qualificação dos sistemas. Afinal, são os contratos que definem o escopo do serviço, as responsabilidades dos atores envolvidos, o modelo de remuneração, a previsão de subsídio por parte do poder público e as penalidades e os parâmetros pelos quais a qualidade e o desempenho do serviço são avaliados.

Com raras exceções, os contratos de concessão no país não acompanharam a evolução do mercado e as novas necessidades da população. Enquanto muitas cidades buscam formalizar repactuações feitas emergencialmente em função da pandemia, outras estão se estruturando para uma nova geração de contratos. É a hora de desenhar melhores contratos, e há consenso de que as oportunidades de melhoria são muitas.

Outros setores têm boas práticas a compartilhar

O Ciclo de debates sobre contratos de concessão do transporte coletivo por ônibus foi promovido pelo WRI Brasil em parceria com o Centro de Estudos e Regulação em Infraestrutura da Fundação Getúlio Vargas (FGV-CERI), o Connected Smart Cities (CSC) e a Associação Nacional das Empresas de Transportes Urbanos (NTU). Os encontros e entrevistas envolveram representantes do poder público, operadores, indústria, especialistas e sociedade civil que atuam na área de mobilidade urbana, além de especialistas dos setores de aeroportos, distribuição de energia, iluminação pública, parques, saneamento e transporte por trilhos.

O transporte público coletivo não é o único serviço que opera por meio de concessões. Muitos setores da vida urbana, como saneamento, energia, aeroportos e parques, dispõem de contratos em moldes parecidos. Apesar de diferenças intrínsecas, são atividades guiadas pelo interesse público e lidam com desafios comuns. Por que, então, não buscar nos contratos de concessão desses setores boas práticas que possam ser adaptadas ao contexto dos ônibus urbanos?

Com este objetivo, o WRI Brasil promoveu com parceiros um ciclo de debates para discutir melhorias nos contratos do transporte coletivo, a partir da combinação de perspectivas de atores do ecossistema da mobilidade urbana com as experiências e boas práticas de especialistas de outros setores. Ao longo de dez meses, os encontros e entrevistas envolveram mais de 115 pessoas de 75 organizações e de 15 setores.

Destas conversas, destacam-se cinco principais pontos que podem ser incorporados para o aprimoramento dos contratos de concessão do transporte coletivo por ônibus.

1. Diretrizes nacionais para indicadores de contrato

A inclusão de indicadores de avaliação da qualidade dos serviços prestados como condicionante para a remuneração é uma boa prática importante, mas que ainda é pouco difundida. Entre as causas, os atores do setor de transportes ouvidos apontam a dificuldade de monitorar os indicadores de desempenho e satisfação previstos nos contratos. A falta de uma metodologia e parâmetros padronizados nacionalmente é uma barreira adicional para as cidades, que precisam desenvolver sua própria metodologia.

Os setores de energia e aeroportos dispõem de diretrizes nacionais quanto aos indicadores que devem ser monitorados em contrato e o cumprimento de parâmetros mínimos que incidem sobre a remuneração da concessionária.

A Agência Nacional da Aviação Civil (Anac), por exemplo, estabelece Indicadores de Qualidade do Serviço (IQS) e o cálculo de um fator da qualidade (Fator Q). Entre os aspectos avaliados estão dados de movimentação aeroportuária, tempo em fila de inspeção, acesso à informação, conforto térmico e pesquisas de satisfação com passageiros (PSP) aplicadas periodicamente. Uma auditoria externa deve ser contratada para verificar os resultados, e o desempenho da concessionária influencia o reajuste tarifário do próximo ano, tanto positiva quanto negativamente. A cada cinco anos é feito um processo de revisão dos parâmetros do contrato, e a composição é atualizada para se adequar à nova realidade de cada aeroporto.

A Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) estabelece limites máximos para interrupções do serviço (em número e em duração), que se superadas impactam na remuneração das concessionárias de distribuição de energia. O órgão divulga amplamente as metodologias de cálculo dos indicadores e o desempenho das distribuidoras.

Uma ressalva à remuneração segundo indicadores de desempenho e satisfação são os dias atípicos: dias em que o cumprimento dos parâmetros mínimos de desempenho podem ser desconsiderado devido a condições externas extraordinárias, que inviabilizam a operação normal. A Aneel regulamenta os dias atípicos conforme uma metodologia baseada em critérios estatísticos adaptados a cada região.

Na década de 1960, o governo federal criou a planilha GEIPOT para balizar o cálculo da tarifa do transporte coletivo. Ação semelhante poderia ser tomada para os indicadores de contrato, com a definição de metodologias e parâmetros padronizados e a especificação do que são dias atípicos.

2. Regulação a nível nacional para assegurar qualidade

Um aspecto bastante mencionado durante o ciclo de debates foi a importância da criação de uma agência reguladora nacional, como ocorre com a Aneel e a Anac. Esses órgãos são responsáveis, por exemplo, por editar normas de referência e estabelecer metodologias para indicadores de qualidade.

Os diálogos com atores da mobilidade estão em sinergia com discussões sobre o transporte público no Legislativo e no Executivo, onde tramitam propostas como o Marco Legal do Transporte Público Coletivo e o Sistema Único de Mobilidade, em paralelo ao desenvolvimento de um novo Plano Nacional de Mobilidade Urbana.

Um exemplo recente ilustra a importância de um órgão regulador: a Anac foi fundamental para que o setor rapidamente respondesse à crise da Covid-19, repassando recursos para minimizar os impactos da queda de demanda e assegurar o funcionamento dos aeroportos. A ação foi premiada como uma das melhores iniciativas regulatórias durante a pandemia pelo P3C, instituição especializada no mercado de PPPs e concessões.

O saneamento, por ser um serviço básico que vai além das fronteiras de um único município, pode ser uma inspiração mais concreta para o transporte coletivo. O Marco Legal do Saneamento, sancionado em 2020, estabeleceu a Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA) como ente regulador do setor a nível federal. É a ANA que edita as normas de referência a serem observadas pelas agências reguladoras de saneamento municipais, intermunicipais e estaduais, sempre com foco no cumprimento das metas de universalização de acesso a água potável e coleta de esgoto do Marco Legal, entre outras atribuições.

3. Pesquisa de satisfação é regra, não exceção

Entender a percepção dos clientes quanto à qualidade do serviço é a base para ações de qualificação mais assertivas. Mas atores do transporte entrevistados reforçam um temor recorrente do setor: o de que pesquisas de satisfação são subjetivas e que, por isso, sua inclusão nos contratos de concessão é inadequada.

Recife, Salvador, São Paulo e Uberlândia são exemplos de contratos que já preveem a satisfação dos clientes como fator de avaliação do serviço com impacto na remuneração, mas são exceção. Em contratos dos setores de trilhos, parques e aeroportos, pesquisa de satisfação é regra.

O contrato da ViaQuatro, concessionária da Linha 4-Amarela do metrô de São Paulo, estabelece que as pesquisas devem ser realizadas semestralmente, e o indicador de satisfação do usuário tem peso de 30% sobre o Indicador de Qualidade do Serviço “geral”.

pessoas saindo de metrô em São Paulo
Em contratos dos setores de trilhos, parques e aeroportos, pesquisa de satisfação é regra (foto: Mariana Gil/WRI Brasil)

O edital para concessão de parques do Lote 1 de São Paulo (seis parques incluindo o Ibirapuera) estabelece diretrizes para a aplicação de pesquisa com usuários do parque, assim como o contrato do Parque Nacional do Iguaçu, onde a satisfação do usuário tem peso de 35% e deve ser medida anualmente.

No setor aeroportuário, a pesquisa de satisfação é uma das variáveis que formam o fator da qualidade. No aeroporto de Confins, por exemplo, 1.500 pesquisas anuais devem ser aplicadas, abordando aspectos como acesso à informação, conforto, limpeza e satisfação com tempo de espera.

Em comum, os setores empregam metodologias estatisticamente válidas – em que a amostra de clientes pesquisados representa com um certo grau de confiança o conjunto de todos os passageiros do sistema são utilizadas.

A Pesquisa de Satisfação QualiÔnibus, desenvolvida pelo WRI Brasil, é um exemplo de metodologia padronizada e estatisticamente válida que pode ser aplicada no transporte coletivo por ônibus para aferir a satisfação dos clientes . Ao longo dos últimos anos, foram realizadas mais de 40 aplicações da pesquisa, totalizando 50 mil pessoas entrevistadas em cidades de norte a sul do país.

4. Aquisição de energia para ônibus elétricos

Um dos temas do momento no setor do transporte coletivo por ônibus, a eletrificação foi abordada nos debates. Enquanto cidades brasileiras realizam testes de ônibus elétricos para se familiarizar com a operação dos veículos, alguns gargalos para o ganho de escala da transição ainda geram incertezas. Um deles é o fornecimento e a aquisição de energia elétrica, afinal, a demanda de eletricidade para a operação de uma frota de ônibus elétricos é tão grande que requer a construção de subestações, aumento de carga nas garagens e/ou terminais, adequação no sistema de distribuição gerando obras para atender a nova demanda de energia e mesmo a aquisição de energia no mercado livre de energia.

O setor de trilhos tem experiência no assunto. Incluem-se aí a elaboração de projetos de infraestrutura, como subestações de energia, mas também a aquisição de energia em larga escala via mercado livre.  Essa expertise pode informar ações pelo transporte por ônibus tanto do ponto de vista das cidades, em como prever e incluir essas questões dentro dos contratos de concessão, quanto dos operadores, em como trafegar nesse novo mercado.

Segundo levantamento da Folha, duas das sete empresas operadoras de ônibus de São Paulo que já possuem ônibus elétricos nas suas frotas utilizam energias renováveis, obtidas através do mercado livre de energia. As demais utilizam energia de origem convencional (fornecida pela concessionária do município) ou não responderam.

No setor de transporte de passageiros sobre trilhos, a eficiência energética é um tema central: segundo a ANPTrilhos, 53% dos sistemas urbanos brasileiros já obtêm energia elétrica no mercado livre.

pessoas em escada em estação de trem
53% dos sistemas urbanos de trilhos no Brasil obtêm energia do mercado livre (foto: Mariana Gil/WRI Brasil)

5. Mecanismos em contratos para alavancar a inovação

O “engessamento” dos atuais contratos do transporte coletivo por ônibus é citado com frequência pelos atores do setor. Qualquer inovação – por exemplo, um novo aplicativo de planejamento de viagem – requer que um aditivo ao contrato seja assinado, em um processo que pode ser demorado e, muitas vezes, barra a melhoria do serviço.

Como alocar espaço e recursos para a inovação? As concessões de parques indicam uma solução criativa: os contratos preveem a retenção e destinação de uma pequena parte da receita total para investimentos em ações dentro de grandes eixos, mas sem uma especificação precisa. Assim, quando uma nova solução ou oportunidade aparece no mercado, ela pode ser testada e incorporada no sistema sem passar por todo o processo burocrático.

Mecanismo semelhante poderia ser utilizado no setor de transporte coletivo por ônibus, por exemplo, para o teste ou contratação de novas soluções de transporte sob demanda, ferramentas de combate ao assédio e softwares de planejamento de viagem.

Momento oportuno para olhar ao redor

A rediscussão dos contratos de concessão do transporte coletivo por ônibus é urgente, e condiciona outros avanços, como a descarbonização do transporte coletivo e a reforma nos modelos de financiamento. Para além da necessidade, há um contexto político favorável, com as discussões sobre o Marco Legal, o Sistema Único de Mobilidade e o Plano Nacional de Mobilidade Urbana. Algumas cidades têm feito esforços de inovação nos últimos anos.

Conhecer as soluções contratuais de outros setores pode ser mais um empurrão na direção certa: a qualificação dos sistemas de ônibus no Brasil.


Agradecemos a Anie Amicci (BNDES), Carlos Eduardo de Souza (Enel X), Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA), Fernando Pieroni (Instituto Semeia), Joisa Dutra e Luiz Firmino(FGV-CERI), Associação Nacional dos Transportadores de Passageiros sobre Trilhos (ANPTrilhos), Thiago Nykiel (INFRAWAY Engenharia) e Thierry Besse (VINCI Airports) pelo apoio técnico na revisão deste artigo.